Não se Avança em uma Pauta Menosprezando Outra: A Convergência das Lutas Sociais e o Uso Estratégico dos Privilégios
Vivemos em um momento crítico, onde as demandas por justiça e equidade são mais visíveis, mas também mais contestadas do que nunca. E, em meio a essa batalha, surge uma tendência perigosa: a tentativa de hierarquizar pautas, como se uma luta fosse mais legítima ou urgente que outra. Essa abordagem não é apenas contraproducente; ela é uma traição ao próprio espírito da justiça social. Movimentos que se engajam nessa prática estão, na verdade, reforçando as mesmas estruturas de poder que dizem combater.
Movimentos sociais que lutam por gênero, raça, sexualidade, classe, geração e por pessoas com deficiência compartilham um objetivo comum: derrubar as estruturas de opressão que sustentam as desigualdades. Mas, quando um movimento tenta se destacar atacando ou ignorando as demandas de outro, está, na prática, servindo ao sistema que perpetua as desigualdades. É uma estratégia míope e autodestrutiva que mina a luta coletiva. Pior ainda, ao competir por atenção e recursos, esses movimentos perpetuam a lógica de escassez imposta pelo sistema, ao invés de desafiá-la.
Reconhecer os próprios privilégios é um passo essencial para qualquer pessoa ou grupo que realmente deseja se aliar à causa da justiça social. E aqui, é necessário ser incisivo: não reconhecer os próprios privilégios não é apenas uma falha pessoal, é uma escolha ativa de manter o status quo. Pessoas cisgêneras gays, lésbicas e bissexuais, por exemplo, que ignoram o privilégio de viver em um corpo que não é questionado diariamente, estão, conscientemente ou não, reforçando a violência sistêmica contra pessoas transgêneras, travestis e não-binárias.
Ao invés de usar esse privilégio para se proteger, a verdadeira aliança exige que ele seja usado como uma arma na luta contra todas as formas de opressão. Esse reconhecimento deve ser acompanhado de uma ação direta e estratégica. Se você é uma pessoa cisgênera dentro do movimento LGBQIAP+, sua responsabilidade é usar seu privilégio de gênero para amplificar as vozes trans, travestis e não-binárias, para abrir portas que ainda estão fechadas para elas, elus e eles, e para atacar as políticas e práticas que perpetuam a transfobia. Qualquer coisa menos que isso é cumplicidade com a opressão.
A tentativa de hierarquizar pautas é uma tática covarde que evita a verdadeira complexidade da luta por justiça. A interseccionalidade não é um conceito acadêmico abstrato; é uma realidade brutal vivida por pessoas que enfrentam múltiplas formas de opressão diariamente. Negar isso é não apenas ignorar a realidade de milhões de pessoas, mas também sabotar o próprio movimento ao qual se pertence.
Movimentos sociais que buscam uma mudança real devem rejeitar a falsa escolha entre lutas. A justiça social não é um jogo de soma zero, onde a vitória de um grupo significa a derrota de outro. Ao contrário, é um campo de batalha onde a solidariedade entre diferentes lutas é a chave para a vitória. Movimentos que não conseguem ver isso estão condenados a falhar, presos em um ciclo interminável de reivindicações fragmentadas que nunca atacam o cerne da opressão.
A transformação social verdadeira exige mais do que palavras vazias sobre solidariedade; exige ação. E essa ação inclui o uso consciente dos privilégios para desmantelar as estruturas de poder. Se você possui algum privilégio – seja de gênero, raça, classe, ou qualquer outro – e não o está utilizando para apoiar as lutas daqueles que não o possuem, você não está apenas falhando com essas pessoas; você está ativamente contribuindo para a perpetuação da opressão.
Não podemos avançar em uma pauta atacando outra. Essa é a lógica da opressão, não da libertação. Ao invés de dividir e conquistar, devemos unir e subverter. A justiça social só será alcançada através da união das lutas e do uso estratégico dos privilégios para destruir as barreiras que ainda mantêm tantas pessoas oprimidas.