Quem tem medo da pluralidade do conceito ‘MulhereS’
O conceito de ‘mulheres’ permanece em constante disputa entre conservadores de religiões fundamentalistas, práticas médicas ultrapassadas, feministas radicais trans-excludentes (TERF) e discursos políticos sem fundamento crítico. O objetivo destes grupos é reivindicar e aprisionar o conceito para si, defendê-lo de uma “suposta” apropriação. A indagação que surge a partir dessas movimentações ultraconservadoras é: esse pânico possui alguma veracidade? A resposta mais curta é não!
Mas, contrapondo argumentos fundamentalistas, nessa matéria pretendo ampliar a discussão sobre o conceito ‘Mulheres’ e porque esse conceito está no plural por essência.
A afirmação fundamentalista da “mulher” no singular parte do determinismo biológico, crença esta que assume que “o ser mulher” depende exclusivamente da identificação do genital no momento do nascimento. A justificativa biologizante já avançou significativamente no campo teórico e prático com estudos do século passado e do século XXI por meio de pesquisas de autoras de diversos campos do conhecimento, como, por exemplo, Ortner (1979), Scott (1989), Fausto-Sterling (1993, 2000) e Machado (2005).
Aqui, faço um destaque para os estudos da bióloga e professora emérita da Universidade de Brown, Anne Fausto-Sterling, que, em suas obras, amplia a categoria “mulher” para além do constructo conservador biológico, assumindo que não é uma categoria fixa, mas sim um conjunto social, biológico e cultural que interagem entre si e resultam na diversidade do que vem a ser mulheres.
No campo biológico, especificamente em pesquisas de citogenética (área de estudos sobre cromossomos), não há uma definição determinante do ser “mulher”. A complexidade biológica dos corpos não é capaz de resumir em padrões o que vem a ser “fêmea” e “macho”, e se a biologia não é capaz de simplificar os corpos, a quem os ultraconservadores do gênero vão recorrer? Se você pensou em ideologias religiosas e radicais, você acertou!
Religiosos conservadores e feministas radicais precisam de “vilãs” para que sejam nutridas as suas lógicas de pânico e sequestro conceitual, ainda que estas sejam falaciosas. Por qual outro motivo ambos os grupos (não se limitando a esses) atacam pessoas trans e travestis incansavelmente? Pelo simples fato da existência. Sim, o fato de existirem pessoas trans e travestis invalida o discurso determinista desses grupos.
O mito cristão de que uma divindade criou dois gêneros e que estes dependem exclusivamente dos genitais é simples o suficiente para que sejam justificadas as desigualdades de gênero na sociedade, uma vez que, pela ordem desta divindade, um gênero teria poder sobre o outro a partir do órgão genital. Por isso, o discurso religioso se espalha com tanta facilidade, pois não depende de uma reflexão, a realidade está dada, é só seguir a “receita de bolo”, que o paraíso os aguarda.
Na lógica do feminismo radical, não é diferente. A reflexão é óbvia. Se feministas radicais lutam contra uma dominação masculina, por qual motivo atacam mulheres trans e travestis? Seria um desvio das próprias pautas? Ou a produção de “vilãs” que já são marginalizadas e excluídas da sociedade, e assim tentam direcionar ataques contra grupos já violados? Sim, o feminismo radical depende do binarismo de gênero “ser mulher” e “ser homem”. Caso contrário, contra quem se manifestariam?
Para finalizar, a ideia da unidade de “mulher de verdade” é um mito. O que é real são mulheres no plural: mulheres negras, brancas, amarelas, indígenas, transgêneras, travestis, gordas, magras, com deficiência, sem deficiência, de diferentes culturas e classes socioeconômicas.